Ricardo Alarcón: De boas intenções Obama está cheio

28/02/2010 13:41

Querer é uma coisa, fazer é outra. Assim pode ser resumida a avaliação do presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular de Cuba, Ricardo Alarcón de Quesada, sobre o governo de Barack Obama.

Dias antes da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país e da morte do opositor Orlando Zapata, o chefe do parlamento cubano recebeu o Opera Mundi para uma entrevista em que falou principalmente sobre dois temas: a política de Washington para a América Latina (Cuba em particular) e o caso dos cinco cubanos presos nos Estados Unidos desde 1998 sob acusação de espionagem.

Sobre Obama, Alarcón tem a seguinte opinião: não é mal intencionado, mas também não vai fazer história como um presidente que aproximou seu país dos vizinhos ao sul. É bem melhor que George W. Bush, mas não sabe como colocar em prática as ideias que tem. Não dá a devida importância a Cuba e à região de maneira geral, mas nem é por falta de vontade: o problema é que temas como reforma da saúde, crise econômica e guerras dominam sua agenda.

Os cinco prisioneiros são Antonio Guerrero, Fernando González, Gerardo Hernández, Ramón Labañino e Réné González , que foram condenados pela juíza de Miami, Joan Lenard. Após uma decisão do Tribunal de Apelação considerando as penas muito duras, no final do ano passado três deles tiveram suas penas reduzidas: Ramón Labañino, antes condenado à prisão perpétua, teve a pena fixada em 30 anos; Fernando González teve redução de 19 para 18 anos; Antonio Guerrero, de perpétua para 22 anos.

Sobre eles, chamados de “patriotas” pelos cubanos, Alarcón defende que as penas impostas pela Justiça dos Estados Unidos são descabidas e desproporcionais em relação a condenados com acusações mais graves.

Estudioso das relações entre Cuba e Estados Unidos há quatro décadas, o presidente da Assembléia foi chefe da missão cubana na Organização das Nações Unidas e chegou a ser cogitado como possível sucessor de Fidel Castro. Veja abaixo a entrevista:

Opera Mundi: O sr. pode explicar o que os cinco cidadãos cubanos hoje cumprindo pena faziam em Miami? A defesa alega que estavam investigando um ato terrorista contra Cuba.

Ricardo Alarcón: Não somente um, mas muitos atos. Isso está documentado no processo. Por exemplo, entraram no grupo terrorista de Orlando Bosh para descobrir os planos terroristas que estavam tramando e informar a Cuba. E uma das testemunhas de acusação, Rodolfo Frometa, faz parte de um grupo chamado Comandos F4, gente que veio de lancha por aqui e atacou a costa cubana, o que reconheceu no tribunal. Esse é um dos grupos em que os companheiros se infiltraram.

Opera Mundi: Qual é a posição do governo cubano sobre a redução da pena decretada em dezembro do ano passado?

Ricardo Alarcón: Mesmo com a redução das penas, elas são realmente excessivas, se compararmos com qualquer outra sentença ditada nos últimos anos nos Estados Unidos por espionagem. Recentemente, houve um caso de um norte-americano acusado de espionar para a China (James W. Fondren, condenado em setembro último por entregar documentos do Departamento do Estado a um agente chinês), e o sentenciaram a três anos de prisão.

Só que os cinco patriotas cubanos não foram acusados de espionagem, mas de conspiração para cometer espionagem. Conspirar, segundo a lei americana, quer dizer que duas ou mais pessoas se puseram de acordo sobre fazer algo. Se alguém, por realizar espionagem, é condenado a três anos, alguém por conspirar para isso deveria receber muito menos. Há vários casos de espiões reais que roubaram documentos secretos da Casa Branca, do Pentágono, do Departamento de Estado. Nenhum deles foi condenado a prisão perpétua ou a 30 anos de prisão.

Opera Mundi: Há outros casos de cubanos presos por espionagem nos EUA?

Ricardo Alarcón: É muito raro que haja julgamentos em qualquer país do mundo. Quando fui embaixador na ONU, nos anos 1970, tive companheiros acusados de espionagem que foram expulsos. Então, o que ocorre muito são expulsões de espiões de um lado e de outro.

Opera Mundi: O governo cubano não considera a redução das penas uma vitória?

Ricardo Alarcón: Pode-se dizer que é um avanço. Ter uma sentença determinada significa que a pena pode ser reduzida, por boa conduta, porque parte da prisão já está cumprida... Nesse sentido, sem dúvida foi uma vitória. Não é ainda Justiça, porque não posso dizer que seja justo que mantenham uma condenação de 21 anos a Ramón ou de 20 anos para Antonio. Agora, devem transferi-los das áreas de segurança máxima para áreas mais leves. A mãe de Toni contou-me que, na prisão onde ele está, outros prisioneiros passam a maior parte do tempo fora do edifício, mas os que estão em segurança máxima ficam encerrados dentro do prédio.

E há coisas absolutamente diabólicas: os presos de segurança máxima, por exemplo, têm que se reportar (aos guardas) a cada duas horas. Assim é o dia inteiro, sendo checado, contado, vigiado pelos guardas etc. Quem lhes devolve esses onze anos de privações especiais que não estavam justificadas?

Opera Mundi: Além dos aspectos práticos da detenção, o sr. considera que houve uma vitória política?

Ricardo Alarcón: O mais importante, a meu ver foi o argumento usado pela promotora para pedir uma sentença mais leve: a existência de um movimento de solidariedade, uma onda que se estende por todo o planeta e que, para o governo norte-americano, é importante tratar de conter. Para nós, é um importante reconhecimento da eficácia da denúncia internacional e da solidariedade internacional.

Opera Mundi: Dizem que a política dos EUA em relação a Cuba se faz na Flórida e não em Washington. O sr. concorda com isso?

Ricardo Alarcón: Isso é verdade em certo sentido. Para os Estados Unidos, Cuba não tem sido até agora considerado como um assunto muito importante. É um país pequeno, não é um mercado grande. É um inconveniente, uma chateação, mas não é um Brasil, uma China.

Quando havia guerrilhas na América Latina, claro, a revolução cubana teve um impacto no continente, e isso se converteu em uma preocupação para eles. Mas hoje Cuba não é um problema que interesse a muitos norte-americanos. Exceto para os antigos proprietários e funcionários do regime de Batista (Fulgêncio Batista, ditador derrubado pela revolução de 1959), essa gente que se instalou em Miami e a converteu em uma fortaleza.

Opera Mundi: O poder local pertence a esse grupo?

Ricardo Alarcón: Essa zona eleitoral tem três representantes na Câmara dos EUA. Os três são de origem cubana, dois deles filhos de um ex-ministro de Batista e um deles afilhado de Batista. A Flórida tem dois senadores, como todos os Estados americanos. Até há pouco, um deles era cubano (ele renunciou). O chefe da polícia, o prefeito da cidade, o chefe dos bombeiros, os donos dos principais meios de comunicação locais – TV, rádio, jornais –, todos são cubanos daquela procedência batistiana.

Quando o processo judicial começa e os jurados são interrogados pelas partes, a maioria diz ter medo de tomar uma decisão contrária a essa gente. E esses mesmos jurados, quando estão sentados no julgamento durante sete meses, vêem desfilar esses personagens que dizem ter armas. Um deles foi preso em 1994 por querer comprar explosivos F4, fuzis anti-tanques... Eles são lembrados o tempo todo de que esses tipos são capazes de fazer coisas sem serem molestados pelo governo.

Opera Mundi: O sr. acabou de dizer que Cuba é para o governo americano um problema pequeno. Por que essa comunidade tem tanto poder nacionalmente?

Ricardo Alarcón: A chave para a política americana é o dinheiro. De 2004 até agora, os empresários cubanos em Miami deram 10 milhões de dólares a candidatos de ambos os partidos. Essa gente tem uma influência superior ao número de votos. Mas também tem havido um processo constante de imigração de Cuba para os EUA nos últimos anos, 20 mil por ano...

São pessoas que não têm nada a ver com aquela velha imigração. É gente nascida em Cuba, que se formou aqui, mas migrou por razões que não têm nada a ver com ideologia. São imigrantes normais, que vão para trabalhar etc. Ou seja, aí se está produzindo cada vez mais uma dicotomia, uma separação entre a mentalidade dessa ultradireita batistiana do início e a massa da imigração cubana. Agora, repito: quem controla os poderes locais não é essa massa, mas essa minoria.

Opera Mundi: Agora, na administração de Barack Obama, esse grupo mantém o mesmo poder?

Ricardo Alarcón: Obama é o primeiro presidente norte-americano depois da revolução que conquistou Miami sem apresentar uma política mais agressiva contra Cuba. Ao contrário. Ele prometeu pôr fim às proibições de viagens e remessas dos cubano-americanos. E no último ano, depois da permissão, vieram a Cuba 300 mil cubanos que vivem nos EUA. Veja que aí está a grande contradição. A direita sempre se opôs ferozmente às viagens a Cuba, porque são a negação da ideia do exílio. O exilado é o tipo saído por motivos políticos e não pode voltar. Como uma pessoa pode ser exilada se pode regressar ao país de onde fugiu?

Opera Mundi: Além da permissão às viagens dos cubanos à ilha, você vê outros avanços na política de Obama? Há uma grande pressão de outros países latino-americanos pelo fim do embargo.

Ricardo Alarcón: Logo que Obama assumiu, onde quer que houvesse um dirigente latino-americano, ele e a secretária de Estado [Hillary Clinton] ouviam que o embargo e a política em relação a Cuba eram um erro. Nesse sentido, agora há uma nova situação na América Latina. Cuba tem relações com todos os países da região.

Ou seja, ele sabe que, em termos de relação com a América Latina, Cuba tem se tornado um tema mais importante. Não porque Cuba em si seja tão importante, mas porque a América Latina também mudou. Creio que a maior diferença entre este governo e o anterior [de George W. Bush] se reflete no que disse a procuradora no caso dos cinco patriotas: a administração atual reconhece que há uma onda de críticas, e eles necessitam conter essa onda.

Opera Mundi: Mas isso se reflete em ações concretas?

Ricardo Alarcón: Eu sigo pensando que Obama é uma pessoa com boas intenções. É muito melhor que o de antes. Mas o denominador comum das críticas que eu vejo contra Obama de um setor que mais se iludiu com a sua vitória é sua tendência à conciliação, seu compromisso com os republicanos, ou seja, ele está fazendo um governo muito à americana.

Cuba seria evidentemente um tema que seria criticado pela direita americana, não só em Miami. E ele tem problemas que são muito mais prementes, que necessitam, segundo a sua mentalidade, de certa cooperação com a direita, como o tema da reforma da saúde e a crise econômica. E tem as duas guerras [Afeganistão e Iraque]. Tudo isso faz com que a importância de Cuba fique muito baixa.


Opera Mundi: O sr. vê uma mudança na política americana para Cuba?

Ricardo Alarcón: Há mudanças, mas não são espetaculares. Haverá uma nova rodada de conversações bilaterais sobre imigração, mas isso não é grande coisa, um mecanismo que existia até Bush. Significa alguma coisa ele ser restabelecido, mas não é uma mudança dramática.

A liberação das viagens dos cubanos-americanos foi uma promessa que Obama havia feito e que beneficiou muitíssimo a comunidade, e há uma mudança na linguagem. Não são mais os verbos insultantes de Bush, de Condoleezza [Rice, ex-secretária de Estado]. É um estilo mais civilizado, mas o mais provável é que as coisas não passem daí, pelo menos pelos próximos anos.

Opera Mundi: Então qual seria o peso do reconhecimento pelos EUA da pressão internacional?

Ricardo Alarcón:
Eu creio que se trata de criar, fortalecer e multiplicar ações de solidariedade, denúncia etc. E tratar de que isso chegue aos EUA, que os norte-americanos saibam que isso existe. Isso justificaria uma mudança. Acho, por exemplo, que os americanos agora entendem que a maioria da América Latina e do mundo está contra o bloqueio, porque todo ano se reúne a Assembléia [Geral] da ONU e sai no "New York Times".

Realmente, Obama, até agora, representa, mais do que tudo, uma oportunidade. Eu entendo o que diz o presidente Lula, que é um homem muito sábio. Ele se dá conta de que o inteligente é tratar de impulsionar Obama e também de abrir um espaço que não pode deixar de ser crítico.

Opera Mundi: Tem havido muitas críticas de aliados de Cuba, como Venezuela, Bolívia e Brasil, contra a decisão americana de ampliar as forças militares na Colômbia, com a instalação de novas bases. Como o sr. vê a política de Obama para a América Latina?

Ricardo Alarcón:  Se por um lado o discurso do Obama é, ou quer ser, mais multilateralista, menos belicoso, em algumas questões ele representou uma continuidade da política anterior: plano Colômbia, militarização da luta contra o narcotráfico etc. E quando ocorreu o golpe de Estado em Honduras, Obama o condenou desde o primeiro dia, mas na prática o Departamento de Estado reconheceu o que aconteceu ali.

Há um perigo: para Obama, é muito mais importante o Iraque e o Afeganistão do que o que se passa na América ao Sul. Não é só que Cuba seja tão pequenininha, é que a América Latina tampouco tem essa prioridade na política americana. É curioso porque nos Estados Unidos todo mundo reconhece que o Brasil é um fator fundamental no mundo, que o Brasil não é um país qualquer. Isso se reflete em atitudes respeitosas e de elogio ao Brasil. E mais nada.

Em geral, pode-se dizer que não há uma política muito clara, mas tampouco estou convencido que haja realmente uma política como houve nos anos 1960, 70, 80, com pretensão de dominar. Sei que às vezes a crítica de esquerda diz isso, mas não vejo assim. Há a luta contra o narcotráfico e a militarização na Colômbia, e daí passou-se a provocações perigosas contra a Venezuela, mas me custa muito acreditar que essa administração queira abrir outro flanco de guerra. No final, a política para a América Latina é um grande vazio. Eu concordo com algumas coisas que Lula disse: que é gente com boas intenções, mas que não sabe o que fazer nem como fazer.

Opera Mundi: Há espiões norte-americanos presos em Cuba? Qual é a penalidade?

Ricardo Alarcón: Há um caso recente de um contratista [funcionário não identificado da empresa Development Alternatives, contratada pela Usaid, a agência de desenvolvimento internacional americana, preso em Havana em dezembro de 2009 depois de distribuir celulares e laptops a ativistas cubanos]. Não sei a pena, que depende das acusações. Mas ele nunca vai ser condenado à prisão perpétua, aqui não há prisão perpétua. Mas, por outro lado, o caso dele lembra que essas políticas de infiltração seguem neste governo [Obama]. Há outras pessoas, os dissidentes cubanos, que financiaram ações, mas as condenações nem chegam perto de perpétua. O máximo são 20 anos para aqueles que seguem presos. E daí para baixo.

Opera Mundi: Não há prisão perpétua em Cuba?

Ricardo Alarcón: Não. Temos a pena de morte, que se pratica muito pouco, quando há atos de terrorismo, perdas de vidas humanas. Casos excepcionais, e já faz anos que esta pena não é aplicada.

Opera Mundi: Neste caso se aplicaria?

Ricardo Alarcón: Não.

Fonte: Opera Mundi