Nós, depois de superarmos o vírus

29/04/2020 08:41

Nem poucas mensagens nas redes sociais prognosticam que depois da crise epidemiológica que hoje estamos vivendo seremos melhores, mais solidários, valorizaremos mais a vida e, sobretudo, seremos capazes de construir um mundo diferente, para bem.

Contudo, sem sermos pessimistas, devemos considerar que o mundo não vai ser necessariamente melhor, depois desta crise, de forma espontânea, pelo simples fato de nós almejá-lo. Pelo contrário, em seu livro Doctrina del Shock, Naomi Klein explica com detalhes como nas últimas décadas, em escala global, os cenários de crise (nos quais as populações afundam no medo e a desorientação, as economias ficam arrasadas e os Estados ultrapassados em sua capacidade de resposta) foram os palcos favoráveis para a aplicação de reformas econômicas estruturais a favor do livre mercado e contra o bem público. O avanço da onda privatizadora desmontou o papel social do Estado, inclusive em setores tão estratégicos como a saúde ou a defesa nacional; a despesa social diminuiu e a precariedade (até as últimas consequências possíveis) das condições de emprego lesaram a base das garantias conquistadas pelos trabalhadores, após tantos anos de lutas coletivas, deixando-os totalmente desprotegidos. O neoliberalismo não teve campo mais fértil que o desastre, para conseguir se impor, a tal ponto que até o criou: as guerras no Oriente Médio, cinicamente montadas em nome da democracia, são o exemplo mais claro. Tem sido um negócio altamente lucrativo, enquanto as mortes dos civis são consideradas, simplesmente, danos colaterais. O Equador é, na América Latina, um dos casos paradigmáticos de como o vazio da função social do Estado está na base do desastre sanitário que hoje nos aterroriza. Mas casos similares existem demais nestes dias.

A crise é sistêmica, não tem outra forma de se entender. A globalização prometeu que seriam varridas as fronteiras nacionais, em prol do progresso econômico e que este, sozinho, iria traduzir-se em desenvolvimento social. Mas na prática, a sua tendência neoliberal conduziu, fundamentalmente, à privatização dos benefícios, nas mãos de uma muito reduzida elite mundial e à socialização de todos os custos. O resultado? Vemo-lo hoje: os custos estão sendo pagos com vidas e o que se continua tornando universal é a morte dos mais desfavorecidos.

Ainda que o pensamento neoliberal nos queira convencer de que cada um pode se salvar individualmente, a realidade que nos estão escondendo é outra: perante as crises sistêmicas, as soluções biográficas são insuficientes. Não seria mal que tentemos ser melhores pessoas depois de superarmos esta crise, que valorizemos mais a vida, que aproveitemos melhor o tempo de compartilhar com aqueles que amamos, que demos novo significado aos nossos vínculos e digamos mais vezes ‘eu te quero’, ou comecemos a desfrutar mais o que temos. Seria bom que o conseguíssemos. Todo processo de crescimento pessoal é necessário, mas não vai enfraquecer as estruturas de poder responsáveis pela crise humanitária que estamos vivendo hoje e que poderia se repetir. Nosso bem-estar pessoal, inclusive, aquele que tem a ver com o desfrute de nós próprios de dos nossos espaços mais íntimos de relacionamento, só será realizado plenamente com a nossa capacidade de desenvolver uma consciência crítica acerca da sociedade, a cultura e a época que nos coube viver, e de articular-nos com outros no caminho de defender, até as últimas consequências, as garantias coletivas e o bem comum.

É necessário levar o olhar mais além do puramente individual, focalizar o mundo e tentar compreender a fundo o sistema que em nível global causa os estragos que estamos vivendo. Não podemos fazer concessões ao capitalismo nesta altura da história: a que outro sistema podemos atribuir a responsabilidade pela mudança climática; as condições de emprego precário de milhões de pessoas, a morte dos mais vulneráveis por doenças curáveis, fome ou guerras; a falta de água potável, alimentos e remédios para setores amplíssimos da população mundial; a precariedade dos sistemas de saúde pública, ao mesmo tempo em que são dedicados milhões de dólares à fabricação de armas de extermínio, porque é mais lucrativo?

É preciso defender, de todos os espaços em que nos seja possível, a alternativa contra a hegemonia que representa a construção do socialismo, os direitos e garantias que conquistou e que mantém a Revolução Cubana; valorizar a capacidade que sempre manifestou o Estado em Cuba, e que hoje demonstra novamente com calma, de defender, acima de tudo, o direito de cada pessoa à vida.

Isso não é pouca coisa em um mundo no qual estamos vivendo. Que nossa sociedade continue mudando e que o faça para o bem, que o pensamento crítico revolucionário não falte e seja um exercício sistemático, que se continuem aperfeiçoando os espaços e caminhos de participação política; mas que mudanças, crítica e participação continuem tendo como horizonte a defesa do bem comum através do socialismo.

 

FONTE: GRANMA
https://pt.granma.cu/mundo/2020-04-22/nos-depois-de-superarmos-o-virus