Hideyo Saito: Fidel e os homossexuais na revolução cubana

22/09/2010 01:24

Em recente entrevista, Fidel fez autocrítica pela discriminação a homossexuais no início da revolução. A declaração, recebida com surpresa no exterior, expressa uma mudança mais profunda na sociedade cubana. Desde 2004, pelo menos, afirma-se no país um forte movimento político e social contra qualquer tipo de discriminação, como parte de um projeto de ampliação da democracia socialista. A mais conhecida líder desse movimento é a filha do atual presidente, Mariela Castro.


Por Hideyo Saito*

O reaparecimento do ex-presidente cubano Fidel Castro no cenário público tem tido grande repercussão na mídia internacional. Ele voltou a participar de eventos internos e de encontros com lideranças e personalidades estrangeiras, sempre demonstrando excelente disposição.

Alguns jornalistas especulam que tais aparições ora teriam o objetivo de reduzir as repercussões da recente libertação dos presos remanescentes de 2003, como se elas fossem negativas para o governo cubano, ora de apoiar as reformas econômicas iniciadas pelo atual presidente, Raúl Castro (1).


Um dos mais recentes episódios desse retorno à ativa do líder cubano foi a entrevista à jornalista Carmen Lira Saade, publicada nos dias 30 e 31 de agosto último pelo periódico mexicano “La Jornada”, em que o líder cubano revelou que esteve à beira da morte, aos 80 anos, e só conseguiu se recuperar após uma sucessão de procedimentos médicos de alto risco (2).


Na segunda parte dessa entrevista, Fidel reconheceu que o governo cubano discriminou homossexuais no início da revolução, atribuindo-se a condição de responsável maior por esse erro (3). “Tínhamos então tantos problemas de vida ou morte que não prestamos a devida atenção ao assunto. Cometemos grandes injustiças! O maior responsável fui eu”, disse, embora ressaltando que pessoalmente não nutre preconceito homofóbico (muitos de seus mais antigos amigos são homossexuais, lembrou a entrevistadora).

 
A mídia dominante reproduziu as declarações, mas – para não perder o costume –acrescentou-lhes comentários que procuravam desacreditar a autocrítica de Fidel. Mas nenhuma dessas fontes contextualizou as palavras do líder cubano, para que ganhassem seu pleno significado.


O fato é que há um visível avanço na sociedade cubana, tradicionalmente machista, no tratamento de questões como o homossexualismo e a igualdade entre os sexos. Esse movimento se enquadra na própria discussão sobre o futuro da economia e da democracia socialista em Cuba, que envolve desde a cúpula do governo até o mais humilde dos cidadãos e está presente nas reuniões do Conselho de Estado, da Assembléia Nacional (e de congêneres provinciais e municipais), do Partido Comunista, da Juventude Comunista e das entidades de massa, chegando aos locais de trabalho, às universidades e aos bairros.


Preconceito e repressão


Apesar de a comunidade LGBT ainda se queixar da insuficiência de locais públicos de convivência e diversão e do tratamento que recebe de policiais mais truculentos, o nível de intolerância já não é o mesmo do início dos anos 1990.


Nos idos de 1960, os homossexuais foram convocados para as Unidades Militares de Apoio à Produção (Umap) e podiam ser recusados em alguns tipos de trabalho (como no setor da educação) porque eram considerados maus exemplos. Até recentemente eram frequentes os casos de repressão, embora as leis cubanas tenham-se livrado de resquícios sexualmente discriminatórios em 1997, com a reforma do código penal.


“Nos primeiros anos da revolução, a maior parte do mundo era homofóbica. Aqui também cometemos atos lamentáveis, que ficaram mais visíveis porque se esperava que uma revolução socialista não os cometesse. Agora, tanto a sociedade como o governo estão conscientes disso e querem evitar a sua repetição”, sublinha Mariela Castro, presidente do Centro Nacional de Educação Sexual (Cenesex), entidade que vem impulsionando a luta sobre esse tema, com apoio da Federação Nacional de Mulheres.


Segundo ela, o presidente Raúl apoia seu trabalho, mas a aconselha a ir devagar. “Meu pai mudou quanto a esses assuntos. Eu o via antes como machista e preconceituoso. À medida que me transformei, também o vi mudar”(4).


Coube ao filme “Morango e Chocolate”, de 1993, dos diretores Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, o pioneirismo em abordar o assunto publicamente, e com seriedade. Foi um marco, especialmente quando exibido pela televisão cubana. A fita põe em cena um jovem militante comunista e um artista homossexual, que estabelecem uma relação de conflito e de amizade.

O filme questiona os preconceitos contra homossexuais e critica o comportamento dos comunistas cubanos. Mas o combate aos preconceitos homofóbicos ganhou força sobretudo a partir de 2004, a ponto de, dois anos mais tarde, a novela “A face oculta da lua”, de Freddy Domínguez Díaz, transformar-se em sucesso nacional abordando a temática da homossexualidade, da Aids e da qualidade de vida em pleno horário nobre da televisão: seus episódios passaram a ser discutidos no trabalho, na escola e na rua. O seriado suscitou também entrevistas e debates na televisão e em outros meios. Nessa mesma época, a revista cultural La Jiribilla dedicou amplo dossiê à homofobia em Cuba (5).


Projeto equipara direitos de casal homossexual aos do hetero


Na atualidade, o movimento tenta convencer a Assembleia Nacional do Poder Popular a votar duas leis sobre os direitos de homossexuais e transexuais, que estão em lenta tramitação na casa. Caso sejam aprovadas, a legislação cubana sobre o assunto será uma das mais avançadas da América Latina.


Para Mariela, “uma sociedade que aspira a conquistar mais justiça social tem de ampliar sua capacidade de atender a todas as realidades específicas” (6). O primeiro projeto altera o código de família, de 1975, para que casais homossexuais tenham os mesmos direitos assegurados aos heterossexuais, inclusive no tocante à adoção de crianças e em questões patrimoniais e hereditárias.

 

A reforma institui também o direito de qualquer mulher utilizar os serviços de reprodução assistida, hoje limitados às que são formalmente casadas, e amplia as garantias sociais a crianças, idosos e pessoas com necessidades especiais. Já o outro projeto preconiza que o transexual pode obter mudança legal de nome e de sexo, mesmo sem ter-se submetido a uma cirurgia.


Atendendo à mobilização comandada pelo Cenesex, em 2008 o governo cubano instituiu, por meio de resolução do Ministério da Saúde Pública, o programa de atenção integral aos transexuais, compreendendo desde diagnóstico e tratamento hormonal até operação de readequação sexual. As cirurgias passaram a ser realizadas pela rede hospitalar do país, tendo como público-alvo um grupo de 24 transexuais já diagnosticados.


Havia, na época, outros 57 candidatos em processo de avaliação clínica. Como qualquer serviço médico em Cuba, esses procedimentos são prestados gratuitamente. Quando a medida foi anunciada, a presidente da entidade comentou: “A revolução confirmou sua vontade de continuar a eliminar qualquer forma de discriminação na vida cubana. Assim estaremos mais próximos de nossos ideais socialistas” (7).


Programas contra a homofobia


O Cenesex dá apoio e assistência psiquiátrica a transexuais, além de produzir estudos científicos para subsidiar propostas de política para a área. Outra de suas atividades tem sido a capacitação de policiais, dirigentes partidários e administrativos para lidar com o público homossexual.

Há até um trabalho de preparação de advogados para a defesa adequada dessas pessoas nos tribunais. O tratamento dado a homossexuais nos presídios também passa por mudanças graças à interferência da entidade. Atualmente, eles já são mantidos em alas específicas, onde ficam a salvo de zombarias motivadas por sua orientação sexual.

O Centro defende ainda a criação de pavilhões para que o recluso homossexual possa receber visita íntima. No setor da educação, sua preocupação é aperfeiçoar o conteúdo da orientação sexual e capacitar os docentes a lidar com o preconceito dos alunos.


O aspecto mais visível do trabalho da entidade, contudo, tem sido o educativo: debates, palestras, entrevistas, além de produção de filmes e programas de rádio e televisão. O objetivo é preparar a sociedade para as mudanças que vêm por aí. Desde 2008 passaram a ser exibidos constantemente, no rádio, na televisão e na imprensa escrita, programas críticos à homofobia.


Nesse ano o Dia Mundial contra a Homofobia (17 de maio) foi lembrado em Cuba com um debate no horário nobre da televisão. A semana foi marcada também por outros programas na mídia, além de lançamentos de livros e exibições de peças teatrais e de filmes sobre o assunto.

Em 2009, houve uma grande manifestação pública para lembrar a data, com a participação do presidente da Assembleia Nacional, Ricardo Alarcón. Já em maio deste ano, houve atividades como palestras, lançamentos de livros, apresentações teatrais e musicais em diversas cidades, além de programas alusivos na televisão.


Outro sinal dos tempos é o aparecimento de livros como o do historiador Abel Sierra, “Del otro lado del espejo: la sexualidad en la construcción de la nación cubana”, que conquistou o Prêmio Casa das Américas de 2006, ou de poemas de temática abertamente homossexual, como “A la sombra de los muchachos en flor”, de Nelson Simón.


Da mesma forma, têm sido cada vez mais frequentes os eventos dedicados ao cinema e à literatura sobre a homossexualidade, inclusive nas províncias. Fatos significativos foram ainda a filiação da Sociedade Cubana Multidisciplinar para o Estudo da Sexualidade (Socumes) à organização internacional correspondente e a presença de uma transexual na delegação cubana do Fórum Social Mundial, realizado em janeiro de 2006 na Venezuela.


Uma representação do país participou ainda da 3ª Conferência Latino-americana da Associação Internacional de Gays e Lésbicas, realizada em 2004 no Chile (8). O jornal “Juventud Rebelde” comemorou os fatos acima como prova do “alargamento do espaço de debate no país”.


Processo semelhante de conscientização está em curso no país em relação à discriminação contra a mulher, outra matéria que se considera pendente, embora tenha havido apreciáveis avanços no campo dos direitos sociais e políticos desde o início da revolução.


No Índice Geral de Desigualdade entre os Sexos de 2008, do Fórum Econômico Mundial, o país ficou em 25º lugar entre 130 nações, sendo superado na América Latina apenas pela Argentina (24ª posição). Em 2007, o país caribenho havia sido o primeiro latino-americano e o 22° do mundo. O índice é resultado da avaliação de dados sobre diferenças salariais, acesso à educação, representação política e saúde (inclusive expectativa de vida) (9).

As declarações de Fidel mencionadas na abertura deste artigo se inserem nesse contexto de mudanças em curso no país.


* O autor é jornalista com passagem pela Rádio Havana Cuba. Tem pronto um original de livro sobre a situação atual da revolução cubana, que tem o título provisório de “Cuba sem bloqueio: a realidade cubana vista sem as manipulações impostas pela mídia dominante”.


Notas

(1) Quando este artigo estava pronto, Fidel, em entrevista para o jornalista Jeffrey Goldberg, da revista “Atlantic Monthly”, opinou que o modelo econômico cubano “não funciona mais”, em frase interpretada pelo entrevistador como apoio à introdução de mudanças na economia. O tema, entretanto, vem sendo discutido pela sociedade há alguns anos, com participação inclusive de dirigentes do governo e do Partido Comunista.


(2) A propósito, muitos jornalistas se permitiram concluir, nos idos de 2006 e 2007, que o gravíssimo estado de saúde de Fidel comprovava nada menos que a falência do próprio sistema de saúde de Cuba. A primeira parte da entrevista, “Cheguei a estar morto e ressuscitei”, foi reproduzida pela Carta Maior em 30/08/2010: https://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16918.

(3) A segunda parte, “Soy el responsable de la persecución a homosexuales que hubo en Cuba”, está em https://www.jornada.unam.mx/2010/08/31/index.php?section=mundo&article=026e1mun.

(4) Globo Online. Filha de Raúl Castro luta pelos direitos dos homossexuais em Cuba, 28/03/2008 (https://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL374197-5602,00FILHA+DE+RAUL+CASTRO+LUTA+PELOS+DIREITOS+DOS+HOMOSSEXUAIS+EM+CUBA.html, acesso em 06/06/2008).


(5) Patricia Olguin. ¿Mayor tolerancia con homosexuales? Noticias Aliadas, v. 43, nº 16, Lima, 06/09/2006; e Dalia Acosta. Telenovela catapulta debate sobre diversidad sexual. IPS Noticias, 16/05/2006 (https://cubaalamano.net/sitio/client/report.php?id=445, acesso em 17/10/ 2007).


(6) No Brasil, um projeto de lei que autoriza a união civil entre pessoas do mesmo sexo está em tramitação no Congresso Nacional desde maio de 2009, quando o governo anunciou o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Ver Lígia Formenti. Plano prevê livro com temática homossexual. O Estado de S. Paulo, 15/05/2009.


(7) Dalia Acosta. Diversidad sexual contra viento y marea. IPS Noticias, dez/2007 (https://cubaalamano.net/sitio/client/report.php?id=743, acesso em 04/01/2008); Dalia Acosta. Se propone legalizar derechos de minorías sexuales. IPS Noticias, 15/07/2008 (https://cubaalamano.net/sitio/client/report.php?id=651, acesso em 17/10/2008); La Nación, Buenos Aires. Cuba autoriza la operación de cambio de sexo, 06/06/2008; e Gerardo Arreola. Autoriza el gobierno del presidente Raúl Castro las operaciones de cambio de sexo. La Jornada, Cidade do México, 06/06/2008.


(8) Acosta (Nota anterior); Idem. Libertad gay a la cubana. IPS Noticias, dez/2005 (https://cubaalamano.net/sitio/client/report.php?id=391, acesso em 17/10/2007); Idem. Destapando la violencia. IPS Noticias, 25/11/2006 (https://cubaalamano.net/sitio/client/report.php?id=563, acesso em 17/10/2007); e Orlando Matos. Telenovela desata polémica social. IPS Noticias, mar/2006 (https://cubaalamano.net/sitio/client/report.php?id=420, acesso em 17/10/2007).


(9)UOL. Brasil é 74º no ranking de igualdade entre os sexos, 08/11/2007 (https://noticias.uol.com.br/ultnot/2007/11/08/ult23u705.jhtm, acesso em 09/11/2007); Globo Online. Índice aponta forte desigualdade salarial entre os sexos no Brasil, 12/11/2008 (https://oglobo.globo.com/economia/mat/2008/11/12/indice_aponta_forte_desigualdade_salarial_entre_os_sexos_no_brasil-586365354.asp, acesso em 02/02/2009).


Fonte: Carta Maior